"A música é a linguagem universal - não precisa ser traduzida:
é assim que a alma do artista te fala ao coração."
BERTHOLD ALIERBACH
A música tem evoluído a largos passos. Primeiramente surgiu o canto, em seguida os instrumentos musicais e depois vieram os aparelhos e tecnologias que possibilitaram guardar e reproduzir fielmente o que fora produzido pelos músicos. A partir daí, essa música passou a ser compartilhada por um número cada vez maior de ouvintes, que antes só podiam entendê-la sonicamente em momentos únicos, principalmente em execuções particulares ou em concertos ao vivo. Com a sistematização de seu ensino, educadores e pesquisadores tiveram a possibilidade de discerni-la de forma mais ampla, percebendo suas implicações na vida cotidiana do educando. Este, por outro lado, apresenta uma bagagem relevante dada às conexões estabelecidas junto ao seu reduto cultural e também pelas influências dos meios de comunicação e avanços tecnológicos que acontecem cada vez mais rápidos e inevitáveis.
Os avanços tecnológicos e sociais acontecem cada vez mais rápidos. E, com a mesma rapidez com que são gerados e discernidos, são dissipados quase que instantaneamente em todo o globo terrestre. Como, então, a Educação pode ficar alheia a isso tudo? Digamos que nos dias de hoje isso é quase impossível. Claro que pode e deve haver algum tipo de filtragem nessa avalanche de informações, algumas errôneas e estereotipadas. Até mesmo para evoluirmos (e proteger-nos), é preciso saber o que está acontecendo à nossa volta e, particularmente falando, nos embrenharmos em questões relacionadas à música e ao seu ensino que inferem na construção do saber do sujeito, e que, obrigatoriamente, passam pelas transformações tecnológicas e influências dos meios de comunicação, pela construção da identidade cultural, pela autonomia, enfim, tudo que se relacione com a nova era e com a nova Educação, esta, nem tão nova assim.
Ao longo de sua história, as sociedades modificam-se e estabelecem novas formas ao modo de pensar e agir das pessoas. Há profundas transformações que estabelecem novas relações e tomadas de decisões, levando o sujeito a assumir, por conseguinte, também novas identidades na pós-modernidade. As tecnologias se firmam como um fator substancial na conformação da sociedade atual, principalmente no que se refere aos processos de comunicação, presentes nas mais distintas área. Os meios eletrônicos, por exemplo, foram significativos ao diminuírem distâncias e aproximarem pessoas no tempo, possibilitando novas conexões.
Com advento do computador, do formato mp3 e da internet, as relações refizeram-se. Multiplicaram-se estúdios de gravação, agora mais acessíveis, e a divulgação passou a ser feita também pelos artistas independentes e pelas pequenas gravadoras e produtoras. Os próprios artistas puderam comercializar ou disponibilizar na web suas músicas e materiais em blogs, sítios pessoais, sítios de veiculação de vídeos como o YouTube, acessado por milhões de pessoas diariamente.
A respeito das modificações sociais e da crise de identidade do indivíduo por conta das modificações, Stuart Hall nos diz que as velhas identidades por um grande período estabilizaram o mundo social. Contudo, estão ruindo e levando ao aparecimento de novas identidades e, por conseguinte, levando também à fragmentação e a uma crise de identidade do indivíduo moderno, que era tido até então como um sujeito unificado. Isso tudo, participante de um processo maior de mudanças, "está deslocando estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social" (HALL, 2005, p. 7).
Nesse viés, por muito tempo as gravadoras multinacionais - BMG, EMI, Sony Music, Warner, Universal, entre outras - ditaram os rumos da música e estabeleceram sucessos instantâneos nas emissoras de rádio e TV em esfera mundial. Até por que detinham, devido o alto custo tecnológico e operacional, boa parte do processo fonográfico: gravação, fabricação e distribuição. Foi o caso, por exemplo, do álbum "Thriller" do cantor e dançarino Michael Jackson lançado mundialmente em 1982 pela Sony Music. Vendeu rapidamente milhões de cópias e alcançou gigantesco sucesso nas rádios e nos clips de TVs, encabeçando por um período "acima do normal" o topo da lista das músicas mais tocadas.
É esta situação que vivenciamos na sociedade atual, resultado das contínuas transformações e articulações. Além do maquinário e da tecnologia à nossa disposição, há cada vez mais um volumoso acúmulo e dissipação de dados e informações que chegam praticamente a todas as áreas do conhecimento, inclusive na Educação Musical. E, nesse contexto, os meios de comunicação assumem, por assim dizer, um papel substancial, pois intervêm nas relações sociais, nas construções de identidades, influenciando modos de ser, de agir e de pensar.
Comungo com o Educador Musical Keith Swanwick quando nos diz que fazemos parte desse conglomerado e que o "discurso musical, embora inclua um elemento de reflexão cultural", possibilita a "refração cultural" e nos permite "ver e sentir de novas maneiras". Para o autor, não "recebemos cultura, meramente. Somos intérpretes culturais". E a música "não somente possui um papel na reprodução cultural e afirmação social, mas também potencial para promover o desenvolvimento individual, a renovação cultural, a evolução social, a mudança". E que a música, como forma de discurso com implicações múltiplas, pode ser um veículo de transformação de um mundo diferente por vir, pois se combina com os demais discursos e estabelece-se como uma ligação "entre os indivíduos e entre diferentes grupos culturais", podendo ir "além de suas relações com origem locais e limitações de função social (SWANWICK, 2003, p. 40-45). Diferentes concepções e expressões culturais são assimiladas e identificadas. Outras, todavia, são descartadas instantaneamente. Não que a tecnologia e seus produtos ditem agora os rumos da Educação. Mas eles entram, sim, como mais um elemento a participar da construção do conhecimento e de concepções estéticas. Como negar o rádio, a TV, a internet e os aparelhos digitais incorporados à vida de todos nós, inclusive do educando?
Antes de ingressar na escola o educando já dispõe de uma identidade cultural e consequentemente, de uma bagagem musical relevante, dadas as conexões que se estabelecem continuamente com o seu meio e ao longo de suas experiências de vida. Acontece no engajamento familiar, no círculo de amigos, nas práticas sociais, ou mesmo como ouvinte do conglomerado à nossa volta gerado pelos meios de comunicação. Na escola, por outro lado, este aprendente pode repensar e estruturar um senso musical mais elaborado, contextualizado, direcionado a um propósito específico e relacionado às áreas do conhecimento que o cercam neste ambiente propício.
O que acontecerá é incerto. Até porque, como nos fala José Wisnik, não "se sabe o que será triado, no futuro do grande fluxo da música do século XX. Séculos muito menos convulsionados pela explosão das quantidades, não souberam". Para o autor, que destaca ainda a universalização musical, o "nosso deslocamento perante a música do século quanto a seu significado futuro não é propriamente novidade" (WISNIK, 1989, p. 204). E para Swanwick, com a manipulação, transmissão eletrônica, processo de gravação e geração de sons, levou tudo isso a "uma abertura de novas possibilidades" (SWANWICK, 1993, p. 25-26).
Como consequência inevitável, somos remetidos a muitos caminhos que, por vezes, traz -nos inquietações: A pós-modernidade que estamos vivenciando será a glória dos mais fortes ou será o fim das "culturas mais fracas"? Ou então levará tudo isso a contínuos cruzamentos, pluralismos ou mesmo a uma homogeneização cultural, talvez pasteurizada, afetando inevitavelmente a Educação? Fazer o quê? Particularmente, qual o novo sentido e novos paradigmas no ensino musical? Resistir, inovar, esperar, atualizar-se, abdicar, sucumbir? São perguntas que ainda não podemos responder. O que não invalida procurarmos, não necessariamente as respostas, mas os significados e direcionamentos que se apresentam hoje, além dos que estão por vir.
Pensar em um ensino de música atualmente é dirigir-se ao real, ou pelo menos tentar, e a partir dele construir e alicerçar-se em uma prática que não seja somente longitudinal, ambigua e inaplicável. E isso não significa renegar o magnífico acervo cultural construído até o momento. De forma alguma. Mas também não mais se valida compartimentalizar de maneira estanque o saber, fincando-se somente no passado e não participar da construção do (novo) conhecimento que está à volta, de várias formas.
O ensino da música na escola regular possibilita também uma reflexão a respeito do papel desta cultura (musical) na sociedade onde estamos inseridos. E, como já mostrou o pesquisador e musicólogo Murray Schafer, nos invocando para uma escuta consciente, certamente não há como escapar do fato de que hoje a música e os sons (provocados) tornam-se cada vez mais presentes (e onipresentes). Haja vista as rádios, internet, celulares, aparelhos sonoros que nos acompanham corriqueiramente, seja na sala de aula, em casa, no lazer, no trabalho, carro, metrô, ônibus ou mesmo nas celebrações religiosas (SCHAFER, 1991, passim).
Questionar e procurar entender como a música e as tecnologias da comunicação atuam sobre o educando é uma das preocupações de muitos educadores e pesquisadores da área musical. Na música e em tudo que está à sua volta é preponderante buscarmos a compreensão das mudanças que já se apresentam e que se estabelecem no nosso dia a dia. O momento que estamos vivenciando requer, pelo menos, um olhar mais crítico por parte de todos os segmentos da sociedade, pois presenciamos rápidas e contínuas transformações, que trazem incontestáveis benefícios, mas também o inverso.
De certo, o novo e a modernidade amedrontam. Mas, ao mesmo tempo, nos fascinam e nos fazem evoluir. O velho não significa obsoleto, mas o novo não pode ser negado, sob pena de se perder e, por ironia, tornar-se obsoleto e inaplicável.
Paulo Freire nos fala que é "próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa do velho não é apenas o cronológico". O velho mantém sua validade devido a tradição, e continua novo, continuando Freire, por marcar "sua presença no tempo" (FREIRE, 1996, p. 35).
Nessa incessante busca e diálogo, respostas satisfatórias hão de surgir e, em contrapartida, outras provavelmente não poderão ser respondidas, pelo menos de imediato. E isso nos impulsiona à frente, sempre. Não as respostas, mas a certeza de que nos renovaremos, de que estaremos sempre a aprender em uma inesgotável fonte, atingindo patamares até então inimagináveis.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo.
Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HALL, Stuart.
A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
SCHAFER, R. Murray.
O ouvido pensante. Tradução de Marisa Trenche de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva e Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundição UNESP, 1991.
SWANWICK, Keith. Permanecendo fiel à música na educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 2., 1993, Porto Alegre.
Anais... Porto Alegre: ABEM, 1993. p. 19-32.
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Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.
WISNIK, José Miguel.
O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.